Não me toca
"Já estou há três dias neste quarto escuro, rodeado
por garrafas vazias, em silêncio total mas com os gritos na minha cabeça. Fumei
dezenas de cigarros, comi pouco. O álcool já não me dá alívio nem vai resolver
os meus problemas mas ainda bebo a última cerveja que tenho. O meu
telemóvel está desligado, não abro a porta - quero estar sozinho. Dói-me a
cabeça e todo o meu corpo. Ultimamente não tenho dormido bem. Acabei de fazer
as malas e estou pronto para sair e nunca mais voltar a este apartamento de que
tenho tantas memórias. Já tomei uma decisão e sei perfeitamente o que quero.
Dei-me conta de que não era um homem feliz e por isso vou dar o primeiro passo
para a felicidade. A minha felicidade. Hoje ela volta da casa dos seus pais.
Finalmente vou dizer-lhe tudo o que agora sinto. Depois da última briga pensei
muito sobre a nossa relação. Relação... não sei se posso chamar assim isto que
agora há entre nós. Há quatro anos que estamos juntos e com o decorrer do tempo
consigo ver como sou estúpido e quanto tempo perdi estando com uma pessoa que
me parece cada vez mais alheia. Quem sou para ela? Um servo? Um escravo? Uma
marioneta nas suas mãos? Estou farto dos seus caprichos, do seu egoísmo e da sua desconfiança. Estou
farto de tudo e não tenho mais força para viver assim. Fiz tudo para que ela
fosse feliz mas ela nunca apreciou os meus esforços. Eu estava sempre com ela
quando ela precisava, às vezes esquecendo de outras pessoas importantes para mim
e das minhas necessidades. Estava cego de amor mas finalmente abri os meus
olhos. Perdi demasiado tempo.. não quero perder
mais.".
O Pedro deixou de escrever, fechou o seu diário e
acendeu um cigarro. Ainda estava um pouco bêbado mas era totalmente consciente
do que fazia e pensava. Escrever ajudava-lhe a organizar os seus pensamentos e
acalmar-se. Já quase adormecia quando o silêncio do apartamento foi
interrompido pelo som da chave a abrir a fechadura da porta. Podia ser só ela -
a Maria. Voltou cedo mas o Pedro já estava pronto para acabar uma etapa da vida
relacionada com ela. A mulher entrou no quarto aproximando-se dele para dar-lhe
um beijo.
- Não me toques. - disse o Pedro e empurrou-a.
- Pedro.. o que é que se passa contigo? Ainda estás chateado
comigo?
- Chateado? Estou farto de ti! Não vou aguentar mais o
teu egoísmo e falta de respeito!
O Pedro estava cheio de raiva. Já não quis explicar
nada mais sabendo que isso não fazia sentido e que não ia mudar nada.
- O que tu estás a fazer? - a Maria notou as malas.
- Vou-me embora.
- Mas vais para onde?!
O Pedro nem olhou para a Maria, nem ouvia o que ela ainda estava a
dizer. Pegou nas malas e saiu sem se despedir. Agora ela ficou totalmente
sozinha, em silêncio, nesse quarto escuro. Resignada, deitou-se na cama para
acalmar-se. Não sabia o que fazer nem o que pensar. Não percebia nada. Sentiu
alguma coisa debaixo das costas - era o diário do Pedro. Reconheceu a letra
dele e começou a ler a página em que o caderno estava aberto. Os olhos dela
encheram-se de lágrimas que caíram nas folhas de papel.(Conto inspirado na canção "Não me toca" de Anselmo Ralph)
Ewa Kobyłka
Estudos Portugueses 2011/2014
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