O Silêncio (III)

Foi pedido aos estudantes do 2º ano de Filologia Ibérica que, depois de lerem o conto "O Silêncio", escrevessem a continuação da história, um novo final. O texto integral do conto de Sophia de Mello Breyner Andresen pode ser lido aqui: "O Silêncio"
Dentre os trabalhos do alunos foram escolhidos os melhores e hoje é publicado mais um:
Se calhar essa casa nunca foi dela? Se morava aqui, então tinha de ser dela...mas não era. Não era sua a cama no quarto, nem o sofá na sala, nem o tapete no corredor, nem a mesa na cozinha. Tudo só parecia ser dela. Mas não era essa a cama onde adormecia abraçada pelos braços fortes e quentes. Nem era esse o sofá onde se escondia do frio do inverno. Nem esse o tapete que rebatia os passos dos pés pequenos, também não era essa a mesa em que cada tarde punha quatro pratos, quatro pratos... A Joana deteve o seu olhar na cortina que estava a rebater sopros do vento fresco. Em seguida o vento acelerou e entrou com toda a força no quarto, espalhando as cortinas como se fossem cabelos de mulher. Sentiu como se esse vento estivesse acompanhado pela solidão que agora mesmo a estava a abraçar com suas mãos gélidas e ásperas que congelavam a sua alma deixando-a com a pele arrepiada. Soltou-se deste aperto e com estrondo e pressa fechou a janela. Deu a volta e apoiou-se no parapeito. Fechou os olhos e começou a esfregar os braços para aquecê-los. Deixava-se ouvir só o zumbido da mosca que cegamente dava voltas ao redor da luz acessa quando o rangido barulhento dos pneus soou na rua, atravessando os ouvidos da Joana. Abriu os olhos como se alguém a tivesse arrancado de um sonho. O mundo começou a girar em frente dos seus olhos, as imagens baças surgiram e desapareceram como quando era criança e olhava para os seus pais andando no carrossel. Quando era criança...criança... Uma dor aguda penetrou a sua cabeça. Empurrando as paredes e móveis como se fossem inimigos chegou até a cama e com as mãos trémulas abriu a gaveta da mesa de cabeceira à procura duma ampola pequena cheia dos comprimidos redondos e brancos que já podia reconhecer sem ver. Amplamente meteu um comprimido na boca e engoliu-o sem dificuldade nenhuma. Depois despiu-se atirando a roupa para o chão e deslizou para baixo do cobertor, cobriu-se até à cara e assim após cerca de dois minutos adormeceu como um bebé. Os raios de sol tratavam de acordar sossegadamente todo o quarto com o seu calor quando soou o toque de telemóvel. Joana, devagar, ainda com os olhos fechados procurou o seu telemóvel nas calças atiradas no chão.
-Sim?- atendeu o telefone
-Olá, como estás? Não respondeste à minha mensagem...- falou uma voz masculina
-Desculpa, estava a dormir já. O que escreveste?
-Não importa... Tens o encontro hoje?
-Sim, como sempre todas as quintas-feiras. Respondeu Joana, bocejando.
-Bem, alegro-me muito de que continuas a ir lá, mas...Não terminou o homem.
-Mas o quê? Diz, Rafa! Insistia a mulher
-Mas temos saudades de ti... Fazes-nos muita falta aqui em casa. O Mário cada dia pergunta-me quando voltarás... Ele necessita-te. Necessita da mãe e do pai, juntos. Quando é que pensas voltar?
-Rafa, não sei. Não me perguntes. Sabes que é complicado...
-E sempre será! Mas tens de conformar-te com isto, já não podemos recuar no tempo. Temos de continuar, dar passos! Mas dá-los juntos, como família.
-Achas que não sei isso? Entende que...
-Já não sei o que achas.- interrompeu o homem- Só te repito, temos saudades de ti, o Mário e eu, é tudo o que te quis dizer. Tenho de ir, tchau.- desligou o telefone
-Rafa!!! Rafa...- repetia Joana já ao surdo sinal do telefone- Eu de vocês também...
As lágrimas encheram os seus olhos e com a piscadela das pálpebras libertaram-se, correndo devagar pelas bochechas. Cobriu-se de novo com a manta e observando como os raios de sol passeiam pela mobília, adormeceu em seguida.
Eram três e cinco quando Joana entrou atrasada no quarto espaçoso e luminoso, sem muita mobília, só com um círculo de cadeiras no centro, das quais somente uma estava livre.
- Olá Joana! Não te preocupes com o atraso, ainda não começámos. Senta-te ao lado da Ivone, é a nossa nova colega.- mostrou-lhe a cadeira livre. A Joana dirigiu-se em direção à cadeira quando deu conta de que a Ivone era a mulher que gritava ontem na rua. Ficou totalmente surpreendida. Como é que aquela mulher tão desesperada e triste podia estar agora em frente dela sorrindo de orelha a orelha? Há muito tempo que ela mesma não sorria assim . O que passou com o seu sorriso? Desapareceu ou só se escondeu? Estava a inventar as respostas quando a voz da desconhecida a acordou da letargia.
-Olá, sou a Ivone. Muito prazer! sorriu ainda mais a mulher
- O prazer é meu. Sou a Joana.- respondeu da maneira mais amável que pôde sentando-se ao seu lado.
- Hoje vamos trabalhar em pares. Contem ao seu companheiro o seu caso, verão que alívio sentirão. Joana, aproveita! A Ivone é uma ouvinte ótima!- disse a dirigente do encontro.
Foi difícil para Joana começar a contar novamente a história que já tinha contado tantas vezes. Sentia-se sempre como se cada palavra cravasse um prego no seu coração. Mas desta vez foi diferente. O olhar da Ivone e os cíclicos acenos da cabeça cheios de compressão, compaixão e aceitação levaram a que contasse tudo, sem parar, sem vergonha, sem omissão de fatos nenhuns, com detalhes, com emoções, com confiança. A Ivone recompensou-a com o mesmo. A sua história incluiu o sentimento enorme, o amor que separaram primeiro as grades da prisão e que depois separou a morte inesperada, dolorosa e incompreensível.
- E foi ontem o aniversário do seu suicídio... Foi uma peculiar crise da minha alma. Tudo culminou dentro de mim e tive que deitá-lo para fora. Nunca perceberei porque o fez, mas tenho que seguir em frente. Ele não queria, então eu tenho de fazê-lo. Por sorte tenho o meu próprio anjo da guarda, é o meu irmão. Está comigo nos dias como ontem, está sempre que necessito, apoiando e deixando molhar o seu braço com as minhas lágrimas. O pior que podes fazer é encerrares-te na solidão e compartilhar o teu choro com as paredes da casa vazia. E o teu marido, ajudou-te a conformares-te com a perda do Pedro após o acidente?- concluiu a Ivone
- Sim, sim, com certeza.- mentiu com insegurança a Joana, ajeitando nervosamente o cabelo. “Se lhe tinha deixado fazê-lo...” pensou, ao mesmo tempo congelando o seu olhar no chão. Até fim do encontro estava quase ausente, mergulhou nos seus pensamentos como se estivesse percorrendo a espessura de selva. Após o encontro despediu-se rapidamente de todos e com a mesma rapidez voltou para casa. Quase voou pelas escadas e entrou no apartamento como o sopro do vento forte entra pela janela aberta. Tirou com ímpeto a mala que estava desde há meses esquecida debaixo da cama e com as mãos impacientes e suadas meteu dentro a roupa arrugada ou apenas passada a ferro, cosméticos, os papéis, os livros que já tinha lido cem vezes e outras coisas que conseguiu reparar com o seu olhar. Quis fechar a porta quando viu no armário do corredor uma quadrinho coberto de pó com a fotografia duma família feliz e sorridente. Debaixo do vidro havia um papelinho que dizia “Volta rápido. Amamos-te.”. Guardou delicadamente o quadrinho na mala e fechou tranquilamente a porta.
Na estação havia poucas pessoas. Embora o sol já não brilhasse tão fortemente, todas as nuvens desapareceram e o céu parecia alegrar-se da sua ausência. Em seguida ouviu-se o ruído do comboio que estava a entrar preguiçosamente na estação. A Joana sentiu o vento fresco na sua cara, mas esse já não lhe apertava. Escreveu no seu telemóvel “Hoje volto para casa, para nossa casa” e pisou o degrau do comboio com o há muito tempo esquecido sorriso na cara.

Anna Drabik
2º ano de Filologia Ibérica

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