O conto da Mosca Muda sobre o Mordedor
- A Mosca Muda vai contar a sua
história – decidiu a Aranha de Duas Cabeças e o resto dos bichos assentiram
cheios de alegria. Poder sentir as feromonas da Mosca Muda, que, desde que
entrou no grupo com a sua companheira Aranha, não disse nenhuma palavra, era
uma tentação muito grande. O inseto moveu o seu probóscide num gesto de
consentimento e soltou as primeiras palavras.
Era uma história dos tempos passados,
quando ainda os monstros caminhavam pela terra e não havia Grandes Ninhos.
Entre os seres racionais reinava a lei mais antiga de todas as leis antigas,
presente ainda antes da velha Lei do Poder. A esquecida Lei da Morte.
- Uma família da minha espécie, eu não
provenho dela, mas conheço outras moscas que sim, viajava pelo céu, como nós
temos a costume e não seria nada de especial se não chegasse, seguramente por
casualidade, até o fim do mundo. Não era o fim do mundo verdadeiro, afastado,
vazio e sem nenhuma coisa para comer. Era um extremo mais próximo. Não tinha
areia em baixo e vento em cima, todas as paredes eram frias, escorregadias e
brilhantes. Era um sítio, onde o tempo não existia, estava sempre calor e luzia
uma fila de compridos sóis azuis.
Mas o mais importante era que havia ali
imensas quantidades de comida, carne da melhor qualidade. Não como a nossa, dos
bichos, era carne dos monstros, vermelha, saborosa e seca. Montanhas, montanhas
de carne dos monstros. As moscas decidiram que era um lugar perfeito para
viver, assim puseram os ovos e começaram a comer.
A má verdade sobre este extremo do
mundo conheceram depois, quando apareceu o Mordedor. O monstro era invisível
para a sua vista e olfato, não produzia nenhum som e não tinha sombra. Contavam,
que tinha tanta força que podia transformar uma mosca grande e gorda numa
mancha de sangue e era o que fazia. Trazia a morte a qualquer uma que pousava
só por um momentinho para descansar as suas asas. Não caçava para saciar a sua
fome. Havia comida suficiente para todos, também para o monstro. Além disso
deixava os cadáveres no sitio onde caiam. Rapidamente e com muito sangue espalhava-se
a não-vida entre a jovem colónia das moscas.
Algumas delas conseguiram sobreviver à
ira da besta e puseram-lhe um nome, o Mordedor, porque uma só dentada sobrava para
cair morto. As que escaparam, contavam histórias incríveis. Segundo elas, o
monstro mostrava o seu rosto um momento antes do ataque, e era da cor mais bela
(amarela), e assobiava como uma carraça esfomeada, só que mais alto e forte,
fazendo anunciar a sua chegada. No começo poucos acreditavam nas suas palavras.
As outras moscas diziam que estavam loucas ou doentes, mas as histórias
começaram a circular e repetir-se com tanta frequência que a história sobre o
monstro Mordedor de um conto passou a ser uma Verdade; e vivia, como a Verdade,
com a sua própria vida.
Um grupo procurava nele a figura da
Primeira Serpente, que devorava o seu rabo. A Serpente que é o começo do mundo
e o seu final ao mesmo tempo, a que cria e destrói tudo. Outras achavam, que
por casualidade entraram no ninho do Demiurgo e a epidemia de não-vida era um
castigo por comer a carne com que criava novos monstros semelhantes a ele. Mais
perto da solução do enigma estava outra Verdade que descrevia o Mordedor como
um predador, com desejo de caçar, como a aranha, mas que apreciava a astúcia
das suas vítimas. Por isso, embora fosse invisível, mostrava o seu rosto e
deixava fugir os que podiam fazê-lo.
Finalmente, a natureza do Mordedor
deixou de ser tão importante. As moscas acostumaram-se a estar atentas o tempo
todo e o seu número lentamente aumentava. Então começaram a ser mais insolentes
e deixaram de temer o monstro. Algumas até apostavam qual delas fugia dos seus
dentes durante mais tempo. Foi isto o que enfureceu a besta.
Isto aconteceu numa época, não se sabe
se durante o dia ou a noite, porque naquelas terras não havia muita diferença
entre elas. O monstro voltou a atacar. Era mais rápido, mais aferrado e matava
cada mosca que podia alcançar com o seu olho da cor mais bela que via tudo. O voo não ajudava na fuga porque a
besta pulverizava um ácido que cheirava muito bem, doce e suculento, mas se
colava às asas e forçava as moscas a aterrar. Num abrir e fechar de olhos as
moscas jaziam uma ao lado de outra, mortas ou quase mortas, e só neste conto as
corajosas Viajantes, que encontraram o Mordedor, são mencionadas.
***
O M. era um novo empregado num talho.
Gostava de facas e carne, por isso era um trabalho perfeito para ele. O único
defeito eram as moscas omnipresentes, que todos para além dele pareciam
ignorar. Apanhou um mata-moscas e um aromatizador de pêssego e depois de acabar
com os bichos saiu para fumar um cigarro. Não sabia que a lembrança sobre ele
ia durar muito mais do que ele mesmo e de uma forma que não podia imaginar.
(Inspirado na canção "Mosca na Sopa" de Raul
Seixas)
Natalia Sławińska
1º ano de Mestrado em Espanhol
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