" UM FUNERAL À CHUVA" Contextodependência – Em Busca de Sentido



Na cultura há trabalhos que são únicos e, ao mesmo tempo, universais. Conseguem captar a atenção da maioria dos observadores – fazem-nos pensar e comovem-nos. São universalmente reconhecidos, elogiados tanto pela crítica como pelo público. Constituem o ápice da criatividade dos seus autores – são as obras-primas deles, a crème de la crème do género. Existem também produções que nem sequer se juntam ao grupo elitista – são mais mundanas, mas ainda assim sólidas e podem funcionar surpreendentemente bem num contexto definido. Eu incluiria nesta segunda lista o filme que fez parte da série de sessões de cinema português organizada no Centro de Língua Portuguesa Camões – “Um Funeral à Chuva” – uma obra suficientemente intrigante para me fazer esquecer das suas imperfeições como se não importassem nem um pouco.
O filme foi classificado como “comédia”, mas, apesar desta avaliação, acho que a qualidade da criação está fora dos elementos satíricos que são, por vezes (as piadas dirigidas a um casal homossexual entre outros clichés), demasiado previsíveis. Portanto, não tenho dúvidas: uma obra-prima – este “Um Funeral à Chuva” não é.
Contudo, a magia da cultura consiste no facto de que as suas expressões não têm de ser impecáveis para que um indivíduo se emocione e identifique com elas. Às vezes, basta que um observador, espetador, leitor, etc. encontre nelas os valores comuns com o autor. E com certeza não faz mal se a mundividência apresentada for compartilhada entre a audiência. Tendo em conta estes fatores, acho que durante a projeção a 17 de abril de 2013 a longa-metragem de Telmo Martins realizou todas as potencialidades. Apesar de que a minha primeira impressão ainda durante a exibição fosse que o que via era um pouco depressivo, ao sair da sala do Centro vi também um vislumbre de esperança. Isto parece contraditório, mas, na verdade, é perfeitamente compatível.
A intriga concentra-se na história de um grupo de amigos dos tempos académicos. Depois da conclusão do curso os seus caminhos separam-se. O motivo da reunião 10 anos mais tarde é a súbita morte de um deles – o João. Os protagonistas chegam à Serra de Estrela (o lugar onde o João queria ser enterrado) na véspera do funeral para relembrarem a vida do falecido. Esta ocasião é o pretexto para conhecermos a evolução da sua amizade, as atividades que compõem a sua vida atual e, consequentemente, os carateres das pessoas – com um leque de virtudes e defeitos. Por meio das histórias ouvidas no restaurante à volta da mesa distinguem-se as diferenças entre os reunidos. Dizem petas, fazem observações sarcásticas, alguns têm os problemas com a aceitação deles mesmos apesar do aparente êxito profissional (Diana) ou, antes pelo contrário, ficam felizes na vida pessoal a despeito de serem mal sucedidos no trabalho (Rui). Mas, sobretudo, todos se sentem bem neste conjunto.
Apesar disto, acho secundários os pormenores do enredo e as personagens. A depressão aparente que o filme me trouxe à primeira vista e a esperança que se seguiu fazem parte da mesma magia que decide sobre a singularidade da arte. O componente essencial nesta mistura mágica e a palavra-chave para a minha perceção da criação de Martins é “contexto”. “Um Funeral à Chuva” é um filme de contexto – em dois sentidos. Em primeiro lugar, como já mencionado, funciona melhor em ambiente definido – entre os jovens, preferivelmente os estudantes. O que é mais importante é que, em sentido mais lato, descreve o papel do contexto na nossa vida.
Por um lado, a morte do João que é o eixo da narrativa, ou melhor, a reação do pessoal perante a sua visita inesperada na vizinhança faz com que sentisse o desespero ligado à fraqueza humana, à falta de escolha, de atitude adequada em face do destino. Os amigos, com exceção do Zé, tentam lutar com o facto do falecimento do companheiro relaxando-se – bebem vinho, riem-se, brincam e trazem à luz as memórias – comportam-se como se ainda fossem os estudantes. Parecem não ter papas na língua nem preocupações nenhumas. No entanto, pode-se notar que o seu contentamento é ilusório – a reunião é um baile de máscaras. Todos os participantes estão conscientes da realidade do problema, mas esperam que se possa enterrá-lo como se fosse um cadáver que nunca mais viria à tona. As cenas seguintes mostram, porém, que este procedimento pode fazer sentido.
Os protagonistas começam a aprender como abordar a dificuldade – a sua fórmula é simples: a unidade que se baseia nas experiências passadas comuns, restabelecida no presente. Têm de se ajudar uns aos outros, criar um sistema de apoio próprio, visto que fazem parte da geração que rejeitou o conceito de Deus, da verdade absoluta e, consequentemente, a comunidade religiosa. A religião que antigamente era o guia nunca contestado na matéria espiritual, sem a qual não se tocava no assunto, que explicava a morte e as suas consequências, perdeu a sua autoridade. Por conseguinte, o plano religioso, além da coleção das cruzes no apartamento da velhinha devota e a igreja onde se situa o caixão do João, na realização de Martins é inexistente.
Indo mais longe, a realizadora roça o tema do niilismo – desta maneira interpreto a disputa entre o Marco e o Zé. O Zé – um professor académico – sente que os preparativos e a cerimónia de funeral precisam da seriedade e exige que os companheiros sigam a sua opinião. O Marco – um escritor – não gosta desta atitude bastante tradicional, mais solene perante a morte (a necessidade de luto) e acusa o Zé de moralização desnecessária. Sugere que toda a gente tem direito a experimentar esta dificuldade como quiser e que não existe a norma universal. Parece que a forma de agir do Marco não provém da sua indiferença, mas é uma luta interior, uma tentativa de encontrar a crença, os limites que podia respeitar na sua vida.
Para mim, o filme narra não só a história do João e os seus amigos, mas, sobretudo, descreve a situação da nova geração que tenta redefinir as regras de vida, conferir o sentido à existência privada, por eles mesmos, da promessa de eternidade. Os amigos procuram as respostas sem auxílio, sozinhos, e, paradoxalmente ou não, encontram-nas na – desta vez não religiosa, mas laica – comunidade. As suas brincadeiras, as tolices ditas enquanto estão bêbados, ainda que pareçam não servir para nada, formam entre eles uma ligação, deixam-lhes gozar da presença de outros. E isto é o reverso da medalha, um fator animador, o fragmento otimista da mensagem – o que importa no mundo caótico são as pessoas que nos rodeiam. O João não era exatamente o rei da festa, mas os amigos aceitavam-no.
Telmo Martins – um jovem realizador português criou um filme cuja ideia central, se calhar, traduz-se só para o público-alvo – as pessoas de 20, 30 ou 40 anos. Para este grupo a noção do argumentista paradoxalmente, pode parecer universal. Isto é o mérito principal da produção – a coerência entre a mensagem da própria obra e a atitude exigida para a perceber. A interpretação do filme depende do contexto, do mesmo que os protagonistas do enredo tentam encontrar em proveito da sua vida. Isto, bem provavelmente, pode guiar-lhes aos paradoxos. Já no século XVII Hamlet na famosa tragédia shakespeariana disse: “Nada em si é bom ou mau; tudo depende daquilo que pensamos”. Talvez a nova geração privada de soluções certas, suponha que a felicidade própria reside em busca da felicidade e o fim é só um meio?

Bartosz Suchecki
2º ano de Portugalistyka, UMCS

Comentários

  1. Olá Bartosz Suchecki,

    O melhor texto que li sobre o filme.
    Muito obrigado por o escreveres.

    Um abraço,

    Telmo Martins

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