Canções contadas: "Anda comigo ver os aviões"
Outono. Espero que chegue o autocarro que nos levará de um terminal para
outro. Ouço a canção dos Azeitonas “Anda Comigo Ver Os Aviões”. Chove, estão
cerca de 5 graus, todos que estão na paragem estão enfastiados, com frio e
cansados de esperar. Exceto uma pessoa. Uma mulher, quarentona, magra, com
penteado desgrenhado e o telefone junto ao ouvido. Na sua atitude há algo
artisticamente louco. Fala bastante alto com alguém em espanhol, mas ainda que
falasse em voz baixa, todos poderíamos ouvir a conversa, porque simplesmente
ninguém conversa. Fala espontaneamente, de forma rápida, mas claramente e
acentuando cada frase. Fala sobre a viagem de trabalho, sobre o seu namorado,
que continuamente lhe manda mensagens de texto e que tem muitas saudades dela,
que estão muito bem, que em breve se vão ver, que estas viagens de trabalho são
sempre cansativas, mas inevitáveis, e que desta vez também conseguiu fazer uma
barganha, mas agora não pode mais, simplesmente está ansiosa para vê-lo,
beijá-lo e levá-lo para a cama.
O que imaginei ouvindo a canção, a mulher e o seu telefonema? Que não há
ninguém do outro lado do telefone. Que toda essa conversa é uma grande farsa e
que a mulher que está a conversar uma vez por semana vai de autocarro de um
terminal para o outro para poder fingir ser outra pessoa, alguém que não é – e
quem quer ser – ou quem era. E nós somos observadores do espetáculo. Os nossos
olhos e ouvidos fazem com que a imagem de feliz namorada e amada mulher de
sucesso torna-se real. Porque, quer se queira quer não, nós somos as testemunhas
e construímos isso nas nossas cabeças quando a ouvimos falar. Ela mora num
pequeno apartamento. Na primavera morreu o seu parceiro de vida, um grande
amor. Ele ia com ela “ver os aviões levantar voo, a rasgar as nuvens, rasgar o
céu”, “ver os navios a levantar ferro, rasgar o mar” , “ver os automóveis à
avenida, a rasgar as curvas, queimar pneus” e “ver os foguetões levantar voo, a
rasgar as nuvens, rasgar o céu”. Agora está sozinha, o gato preto encontrado na
rua não preencheu o vazio do homem, de modo que ela como um robô vai trabalhar
todos os dias numa grande empresa tentando viver como sempre viveu. Mas não
sabe como ser feliz de novo, então regularmente vai para o aeroporto para,
durante meia hora na paragem e no autocarro, voltar a ser mulher feliz e
apaixonada. Entre os estranhos, estrangeiros, turistas acidentais e
empresários.
Tive também outra visão. Que ela ia também para o porto mas não com o mesmo
objetivo que com o seu namorado. Encontrou uma maneira bastante estranha para
matar as saudades. Ia para acenar aos passageiros que partiam, justamente
julgando que alguém poderia pensar que se despede do marido, e, portanto, a
acharia fácil de seduzir. As viagens ao porto tornaram-se o costume para ela. Ela
pensava que a ajudavam a estar menos maluca. Mas um dia encontrou um
profissional, que a observava e sabia que estes casos são frequentes e fáceis
de aproveitar.
Construí esta figura trágica na imaginação de forma tão clara, com todos os
detalhes e profundidade que poderia colocá-la como a heroína de um livro. Percebo-a
apesar de não estar na sua pele. Ou pelo menos nunca cheguei a uma necessidade
tão extrema de espelhar-me nos olhos dos estranhos. Mas tenho alguma coisa
comum com ela e de alguma maneira entendo-a. Se alguém nos vê felizes, isso
significa que estamos felizes, não? Act as if, dizem os americanos. Por
alguma razão sentimos que se representarmos o suficiente alguma pessoa, acabaríamos
por transformar-nos nela – ou pelo menos acreditar que somos essa pessoa. Isso nos
bastaria, porque eu sou quem eu penso que sou.
Assim, é claro, a Mulher-Maravilha.
Dominika
Ładycka
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