A verdadeira história de Portugal, palavra de honra!

1º prémio ex aequo no Concurso Literário Internacional do CLP/Camões em Lublin : “Uma palavra, um conto”


Às três pessoas que despertaram em mim o interesse pela língua portuguesa, os meus professores no Instituto Camões de Barcelona Pedro Álvares, Alberto Simões e, muito especialmente, Marina Magalhães.



A verdadeira história de Portugal, palavra de honra! 
  No princípio era a Palavra, e a palavra colocou numa mala vogais, consoantes, acentos agudos, graves e circunflexos, maiúsculas e minúsculas. O certo é que a viagem foi um pouco acidentada. Já desde bem cedo os solavancos obrigaram-lhe a desenvolver a sua capacidade criativa. Um 'L' ficou todo torto e tornou-se o til, um 'i' incrustado nos pés dum 'c', o cê cedilhado. Ninguém ficou surpreso, portanto, quando ao chegar ao seu destino, as terras mais ocidentais da Europa, a companhia de transportes decidiu compensá-la -o cliente tem sempre razão- com um pacote especial V.I.P. (acrónimo, como é bem sabido, de Verbos no Infinitivo Pessoal). 
  As pessoas que ali moravam deram à palavra as boas-vindas de braços abertos e com a boca quase fechada. Começaram a usá-la, sim, mas não como os outros povos do sul da Europa, aos gritos e fazendo grande barulho. Os lusitanos sabiam que além das suas costas a civilização terminava. As profundidades do oceano estavam cheias de monstros marinhos gigantescos e de cartazes anunciando a fronteira com o Fim do Mundo. 'Nem pensar o que aconteceria se essas criaturas enormes acordassem', diziam as pessoas entre sussurros e murmúrios. É por isso que os lusos, nessa altura e ainda hoje, falavam à meia, e até a um quarto de voz. 
  Na verdade, ninguém nunca disse que os inícios foram fáceis. A passagem do latim para o português submergiu a palavra numa profunda crise de identidade, o que a levou algum tempo depois a desenvolver uma forte tendência autodestrutiva. A palavra lutava contra si mesma. Cultura contra cultura, religião contra religião, homem contra homem, corpo a corpo. Tempos da Reconquista, nos quais os cristãos estavam a combater os muçulmanos que moravam na Península Ibérica.
 'Dou-te a minha palavra de honra', disse o futuro rei Dom Pedro I à sua amada, Inês de Castro, 'de que serás rainha'. E, efetivamente, assim foi. 'Dom Pedro é um homem de palavra', declarou o taxidermista real aos frades copistas e aos demais meios de comunicação ali presentes, enquanto dava os toques finais ao cadáver da Inês minutos antes de ser proclamada rainha. 
A força da palavra, em todas as suas formas -negociações, tratados, promessas, acordos, mentiras, enganos, epístolas, discussões, convenções, compromissos, ameaças, cartas, escritos, cumprimentos, missivas, pactos- permitiu aos portugueses nos séculos XV e XVI fundar colónias além dos mares e instaurar relações comerciais para adquirirem produtos exóticos e transportarem-nos para a Europa. Bartolomeu Dias, Vasco da Gama ou Pedro Álvares Cabral, entre outros, exportadores da palavra e importadores de açafrão, açúcar, ouro, metais preciosos, tabaco, cacau ou café. Com a força da palavra. E às vezes também, segundo algumas pessoas com a língua afiada -o quão ruim é a inveja!-, com a força das armas. 
  Fortes abalos sacudiram a terra quando a palavra de Deus estava a ser proclamada nas igrejas no Dia de Todos-os-Santos de 1755. Vogais e consoantes por terra, sílabas desconexas e verbos mal conjugados. Palavras emudecidas e interjeições ensurdecedoras. Mas depois do sismo, o maremoto e os incêndios, como frequentemente acontece, veio a bonança. Letra sobre letra a antiga cidade medieval tornou-se a Lisboa pombalina. 
Sem palavras ficaram os portugueses quando na manhã de 29 de Novembro de 1807 viram zarpar do porto de Lisboa, às pressas, a família real toda, nobres, ministros, bispos, comerciantes, pontapés e empurrões. E sem palavras também ficaram os brasileiros quando por volta das quatro da tarde de 8 de Março de 1808 viram desembarcar no porto do Rio, de passo moroso, um príncipe regente muito gordo, Dom João -papada caída e barriga protuberante-, avesso ao banho, princesas com as cabeças rapadas e infestadas de piolhos e uma corte fatigada e alquebrada pela viagem. O glamour e a haute couture não couberam no porta-bagagem; no fim de contas, a família real tinha levantado âncoras para fugirem dos franceses.  
  No século XX, a palavra sofreu de uma afonia com paralisia quase total das cordas vocais e da liberdade de expressão, de ensino e de reunião e precisou ser substituída pela censura durante algumas décadas. Nessa altura, até quase todas as vogais do apelido do ditador Salazar foram censuradas e só pôde conservar o 'a'. Por fim, depois de vários tratamentos, gargarejos e balas de menta, a doença desapareceu e a palavra pôde, inclusive, animar o seu time, os Cravos Vermelhos, na decisiva partida que disputou e venceu no Estádio Novo no dia 25 de Abril de 1974 contra o time do Lápis Azul [parágrafo visado e autorizado pela Censura]. 
  E eis aqui a palavra, hoje um bocadinho mais velha do que há um tempo atrás, com vista cansada e pequenos achaques sem importância, sentada num autocarro e lendo um guia de viagem da Irlanda. Também ela, evidentemente, tira férias de tempos a tempos. Quando lê 'Witamy w Polsce' num imenso cartaz à beira da autoestrada, pergunta surpreendida ao rapaz que está ao seu lado e que dá pelo nome de Sebastião Manuel Silva (S.M.S.):
- Bem-vindos à Polónia? Porquê está escrito isso?
- Pq estamos a chegar ao nosso destino :-) , responde o rapaz.
- Polónia? Não é Dublin? - A palavra tira do bolso os óculos de leitura, coloca-los, olha de novo o bilhete de autocarro e suspira.
- Próxima paragem: Lublin! -, anuncia o condutor.


Abel Losa Vidal
Barcelona, Espanha

Nota biográfica: Nasci no mês de abril de 1977 na cidade de Barcelona, ali onde confluem os sons do mar Mediterrâneo, da língua espanhola e da língua catalã. Estudei Direito na universidade e fiz cursos de pós-graduação na área de gestão económica. Trabalho numa entidade bancária, mas embora viva rodeado de números, percentagens e taxas de juros, a minha grande paixão são as letras. Desde muito novo, a tesoura foi a minha aliada: recortava as caixas de bolachas e as dos pequenos eletrodomésticos para eu poder ler e comparar os ingredientes e as instruções escritos em diferentes línguas. A minha estante é uma pequena e modesta Torre de Babel. Estudo línguas estrangeiras no meu tempo livre. Bati à porta do Instituto Camões de Barcelona há dois anos atrás e em junho de 2015 terminei o nível avançado de língua portuguesa. Em setembro fui de férias a Lisboa e aproveitei para fazer ali também um curso de língua.


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