Perdição
1º prémio ex aequo no Concurso Literário Internacional do
CLP/Camões em Lublin : “Uma palavra, um conto”
„Perdição”
Era uma menina triste. Tinha mãos feitas de
água e coração feito de agulhas. Ninguém conhecia a sua idade, mas era jovem
com esta juventude frágil e inocente que precisa de ser protegida. O seu corpo era
feito de vidro, a sua pele parecia fina demais, via-se perfeitamente as suas
veias e parecia que se olhasses com suficiente atenção, poderias vê-la inteira,
ver o seu estômago, o seu coração, sangue a fluir nas suas veias. Quando se
movia, tinhas medo de que os seus ossos partissem a sua pele como se fosse papel.
Se ficavas ao seu lado, calado, calmo, nunca conseguias ouvir a sua respiração,
como se não precisasse de oxigénio para funcionar, mas sim conseguias ouvir o
latido do seu coração. Lembro-me dela cada dia, vou lembrar-me até ao dia da
minha morte, até que o meu corpo se converta num pedaço de carne, devorado pelo
tempo, comido pela terra. Os seus olhos eram dois digitalizadores, scanners,
olhava para as pessoas como se observasse não a sua cara mas o seu interior.
Sentia-se nela a liberdade, a coragem, a inteligência. A verdade. Passar um
minuto com ela era como o cheiro dos morangos, como o primeiro orgasmo, como
ouvir Pixies pela primeira vez. Era coisa que não se esquecia, lembravas-te
daquele minuto durante muito tempo, durante muitas noites passadas ao lado de
outras mulheres na procura de um pouco de esquecimento.
Fecho-me na minha casa com uma garrafa de
whisky, um Suntory. Ponho a música, Tom Waits. Aqueço a ganza, misturo-a com um
pouco de tabaco, preparo um charro. Apago as luzes, fumo lentamente, viro um
pouco de whisky no copo. Tenho tempo. Está calor, então tiro a roupa e fico no
chão, a olhar pela janela, a ouvir música. Em baixo há uma festa, ouço os
jovens a gritarem, no ar sente-se esta patética combinação de álcool barato,
batatas fritas, perfumes de Pingo Doce e feromonas. Uma felicidade simples para
pessoas simples. Ponho a música ainda mais alto para separar-me daquela
vanidade. Existo só para ti, minha linda. Existo para ti.
….
Tinha vinte e cinco anos e terminava os meus
estudos da economia. Não era como a maioria daquelas crianças que só começam a
estudar para passar mais cinco anos da sua vida de festa, a jogar computador e
procurar o sentido da vida em vómitos às cinco de manhã numa casa de banho
depois de uma festa nas casas de pessoas desconhecidas. Em vez disso realizei
alguns projetos interessantes e fiz estágios nas firmas mais prestigiadas do
país. Jogava na bolsa. Praticava natação e esgrima, dançava tango, lia muitos
livros, sabia cozinhar bem e dormia sozinho só quando de verdade não me
apetecia ter companhia.
Vi-a num bar. Estava fatigado depois de todo
o dia de trabalho. Comecei a trabalhar numa empresa, porque foi a forma mais
rápida de conseguir salário bastante interessante, pelo menos até que conseguisse
o diploma e pudesse trabalhar em alguma coisa mais séria. Atraiu o meu olhar de
imediato. Adoro as mulheres e conheço-as todas. As sempre cheias de energia,
que falam muito, com muita gesticulação, não param de se mexer, vendem o otimismo
em quilogramas. Também são as mais fáceis de conquistar. Depois há mulheres que
todos os dias vestem a mesma roupa, quase não usam maquilhagem e se o fazem, os
resultados são trágicos, porque as suas trémulas mãos não estão acostumadas a
criar esta falsa identidade pintando a cara. Procuram amor, um pouco de
entendimento, querem ter filhos, um trabalho estável. Há também este grupo de
mulheres frias, sempre de saltos altos, como a maioria das minhas colegas do
trabalho. Vivem fechadas no seu pequeno mundo da empresa, roupa elegante,
comida saudável, ginásios e romances.
Ela era diferente. Estava sozinha e não
parecia estar a espera de ninguém. Vestia um vestido branco que descobria os
seus braços, um pouco queimados pelo sol. Não merece a pena descrevê-la. Aliás,
não merecia a pena nem mostrar a sua fotografia, porque a beleza duma mulher
não se esconde na sua fisionomia. Esconde-se em pequenos gestos, na maneira em
que olha para ti, a atenção que presta quando estás a falar, este olhar
concentrado que tem sempre antes de dizer alguma coisa, como se escolhesse cada
palavra com muito cuidado e tecesse um vestido deles. Cada conversa com ela foi
uma canção, foi uma poesia.
Surpreendeu-me que tirou o tabaco da sua bolsa
e começou a fazer um cigarro. Julgaria que não fumou na sua vida. Aproximei-me
dela. Pelo que eu saiba, existem dois tipos de homens: os que, quando uma
mulher precisa de isqueiro simplesmente dão-lho o e os que lhe acendem o
cigarro. Eu sou dos segundos. Olhou para mim surpreendida. A verdade é que
existe só uma frase que nunca falha quando tentas fazer uma mulher apaixonar-se
por ti.
–
Como é que te chamas?
–
Jadira- respondeu. Tinha uma voz delicada e forte ao mesmo tempo, parecia
trabalhada, como se fosse cantora ou atriz.
–
Jadira... Posso sentar-me aqui contigo?
–
Depende- o fumo de cigarro incomodava-me, eram Marlboro Vermelhos. Odeio
cigarros.
–
Depende do quê?
–
Antes de te sentares aqui tens de jurar que não vais apaixonar-te por mim.-
Sorri, mas a sua cara continuava séria, os seus olhos fixados nos meus olhos, o
cigarro acendido nos seus lábios.
–
Tento deixar- disse, como se só agora se apercebesse que estava a fumar.
–
Não vou apaixonar-me por ti. Juro. Posso sentar-me?
–
Podes- sorriu e, por mais patética que pareça esta descrição, foi o sorriso
mais belo que já vi.
Acho que sentar-me ali aquele dia foi uma das
melhores decisões que tomei na minha vida. Foi o inicio do meu fim. Cada
segundo que passámos juntos foi fascinante. Escapava cada possível definição, cada
limite, cada classificação. Resultou que acabou de vir do Catar, ou pelo menos
foi isso que me disse. Criou-se numa família camponesa no profundo interior do
Brasil, no meio de nada e passou a maior parte da sua infância a trabalhar no
campo e a cuidar das crianças mais pequenas na aldeia. Ela própria não tinha
irmãos, a sua mãe morreu durante o parto. Quando o seu pai morreu ela tinha
quinze anos e saiu do país para poder estudar, mas nunca conseguiu nem sequer
terminar a escola secundária. Contudo, não foi isso sobre o que falámos naquele
primeiro dia, obviamente. Falámos sobre Rilke, sobre filosofias de Nietzsche e
Schopenhauer que ela nalguma maneira inexplicável complementava com o seu
próprio razoamento, com as mitologias e contos, mostrando-me uma imagem mais
profunda e mais fascinante do mundo do que qualquer um dos meus amigos
universitários fez durante toda a minha vida. Olhar com os seus olhos era ver o
mundo completamente diferente. Era como ver o mundo inteiro, todas as coisas ao
mesmo tempo. Apaixonei-me por ela no mesmo dia que a conheci, mas fiz questão
de evitar que se visse. Eramos amigos. Bons amigos, mais nada.
Começamos a encontrar-nos todos os dias.
Sempre ou na minha casa, ou nos parques, em bares, ao lado do rio, dávamos
passeios de quilómetros e quilómetros. Nunca percebi bem onde vivia e ela nunca
queria dizer-me. Não queria forçar a situação, força-la a dizer-me coisas que
preferia guardar para si. Deixei o meu trabalho, por mais absurdo que pareça.
Com o dinheiro que poupei podia viver tranquilamente três, quatro meses sem
trabalhar, disse a todos que dediquei-me aos estudos. Mas dediquei-me a ela. Em
princípio pensei que mentia. Contava-me milhares e milhares de histórias, sobre
as suas viagens, sobre como chegou à Índia, como viajou pela Austrália inteira
e falava sobre ir à Bolívia como se fosse a cinco minutos daqui, ao pé da minha
casa. Amava mitos e contos, para ela substituí os grossos livros sobre impostos
e economia europeia pelas mitologias de todo o mundo, contos africanos, o Mahabharata,
o Alcorão, a Bíblia. Não era religiosa, mas era completamente apaixonada pelos
contos. Costumávamos ficar longas horas deitados no parque a inventar histórias
sobre as pessoas que víamos. Lembro-me que durante todo aquele tempo pediu-me
só uma coisa. Pediu-me música. Ficávamos às vezes as tardes inteiras deitados
na minha cama, a ouvir música. Excitava-se como uma criança quando podia ouvir
alguma coisa nova e eu nunca era mais feliz do que naqueles momentos em que via
os seus olhos a brilharem, este sorriso inocente nos seus lábios, ilusão quase
infantil. Introduzi-a ao mundo de Nina Simone, de Portishead, de Nick Cave, Tom
Waits, Beth Hart, Dead Can Dance, Loreena McKennitt. Nunca toquei nela. Nem uma
vez. Não porque não queria, mas porque não tinha coragem para fazê-lo. Era como
um pássaro, como um gato, podia fugir em cada momento. Não queria que fugisse.
Queria que ficasse na minha vida para sempre.
Um dia já não podia aguentar os seus segredos.
Morria de curiosidade de saber onde vivia, em que trabalhava, o que fazia
quando não estava comigo. Decidi ir atrás dela, para poder, pelo menos, ver
onde vivia. Quando nos despedimos, comecei a segui-la, sentindo-me a pior
pessoa do mundo, sentindo que com cada passo estava a trair a sua confiança em
mim, a destruir tudo o que havia entre nós, por mais frágil que já fosse.
Depois de uns vinte minutos apercebi-me aonde ia. O bairro Cloreta. O bairro
dos drogados e alcoólicos. O que fazia ela ali? Entrei atrás dela no prédio. No
portão estava um homem meio nu, só com calções, olhou para mim sem perceber o
que via e fechou os olhos. A baba caiu dos seus lábios sujando o seu peito.
Vi-a subir e subi atrás dela. Terceiro andar. Fiquei nas escadas, ouvi a porta fechar-se.
Subi. Não sabia o que fazer. Fugir? Falar com ela? Perguntar a outras pessoas
se a conheciam? Quem era aquela mulher? Quem era aquela criatura misteriosa,
com milhares de histórias, com cheiro a alfazemas e o que fazia aqui, no meio
do pior bairro da cidade? Pressionei a maçaneta da porta. Nem sequer bati.
Estava aberta, entrei lentamente. A sala estava quase vazia. Havia lá só uma
mesa, um sofá e uma mala, aberta. Alguém estava deitado no sofá, mas não se
apercebeu de que entrei. Um homem, podia ter uns trinta e cinco anos,
seguramente estava drogado. Na mesa havia uns pratos sujos, preservativos, tabaco
e haxixe. De repente tudo ficou mais claro. Os dias inteiros sem trabalho nem
obrigações, as nódoas no corpo que tentava cobrir com mais roupa, inutilmente.
Era uma prostituta. Uma simples prostituta.
–
Era uma vez... uma serpente.
Saltei, assustado.
–
Jadira... Não devia seguir-te, desculpa...- comecei.
–
Uma serpente- Ficou apoiada à parede. Parecia cansada. Resignada- Uma menina
encontrou-a no meio da praia. No princípio ficou com medo, mas a serpente abriu
a boca e disse, não tenhas medo de mim. Não é a minha verdadeira forma, sou um
príncipe vestido na pele de serpente. A menina não confiava nela, mas
aproximou-se e viu que os olhos de serpente eram tão profundos e tristes como
olhos de qualquer ser humano que pisa a terra. Ficaram amigos e a menina
passava dias inteiros na praia, a falar com a serpente. Mas o animal ficava
cada vez mais fraco. Como posso ajudar-te, perguntou a menina. Sabes nadar. No
fundo da água há uma caixa. Durante um mês, todas as noites tens de mergulhar,
apanhar a caixa e vir com ela até à superfície. Depois tens de abri-la para que
possa ver a lua, mas sem tu olhares para o que há dentro dela. Depois tens de
deixar a caixa exatamente onde a encontraste. Assim todas as noites durante o
mês inteiro. Percebeste? Sim, percebi. E a menina começou a fazer o que a
serpente lhe tinha pedido. Todas as noites fugia da sua casa, mergulhava, com
os olhos fechados abria caixa, mostrava o seu conteúdo à luz da lua e depois colocava-a
no mesmo lugar em que a encontrou. Só que não conseguia aguentar a curiosidade
e na última noite abriu os olhos para ver o que havia dentro da caixa. Um coração.
O coração da serpente. Mal a menina o viu, este começou a converter-se em pó. A
menina, desesperada, nadou até à praia e encontrou lá um homem, um príncipe.
Era o meu coração o que tinhas entre as tuas mãos. O meu coração que, segundo a
profecia tinha de ficar nas mãos da mulher amada à luz da lua durante um mês, antes
que pudesse converter-me em homem. Mas podes só sentir o coração, não podes
vê-lo. Quem o sente, vive feliz. Quem o trai, mata. E assim o jovem morreu no
meio da praia e o seu belo corpo converteu-se em pó.
–
Jadira...
–
Sai. Sai daqui.
Saí, sem poder olhar para ela, para a sua cara
cheia de desgosto. Mas voltei lá no dia seguinte, e seguinte, durante muito
tempo. Perguntava sobre ela, procurava-a, mas ninguém sabia nada, ninguém a viu,
ninguém a conhecia, desapareceu como se nunca tivesse existido. A minha
andorinha, a minha única. A minha serpente que deixou o seu coração em mãos não
preparadas para este peso. Ouvi falar dela só uma vez. Recebi um envelope
enviado de algum lugar do Chile. Continha um livro, um livro de lendas. Não
estava assinado mas sei que foi ela quem o enviou. Nunca mais soube dela, mas
estou à espera que reapareça na minha vida algum dia. Às vezes parece-me que é
ela, nalgum comboio, no meio da rua, mas é sempre só uma ilusão. Mesmo assim,
continuo à tua espera. Continuo a tua espera, minha linda.
Sylwia Jabłońska (Polónia)
Vila Real, dezembro de 2015
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