Discurso sobre a filologia

Um dia o Brasil tornou-se o país mais desejado na minha lista de lugares a visitar. Já não me lembro exatamente quando esta ideia estranha me veio à cabeça. Foi, com certeza, depois do meu intercâmbio em Lisboa em 2012, talvez antes do fim desse ano. Não foi a curiosidade turística que me conduziu a este estado da mente. O monumento do Cristo Redentor no Rio de Janeiro ou as praias da Bahia eram-me basicamente indiferentes. Foi o desejo de experimentar uma outra variante do português o que me cativou. Este facto simples e sintomático para o meu mundo extraordinário explica porque Ijuí, uma cidade pequena no sul do Brasil, pintava-se, apesar das suas deficiências, como uma oportunidade imperdível. 
Do mesmo modo, nem o clima agradável, nem os doces deliciosos me davam saudades depois do regresso da Península Ibérica para a Polónia. Também não foi a cultura o que prevaleceu. A cultura polaca, apesar de defeituosa, permanece a única com que me posso identificar plenamente. A mais evidente entre as síndromes de abstinência de Lisboa, foi a falta da língua portuguesa no meu dia a dia. O idioma tão mais querido quando experimentado fora da sala de aulas, no seu ambiente natural. Talvez pareça excêntrica esta confissão, mas Portugal e o Brasil eram para mim mais ligados com a linguística do que com qualquer outro universo (incluindo a gente, a cultura, o clima). A fala e a escrita eram na minha visão a chave – facilitavam-me perceber tudo o que me rodeava ou ia me rodear nestes espaços obscuros. 

  Uma outra revelação curiosa: eu era muito intolerante em relação à variante brasileira do português antes de chegar à América do Sul. Era do meu ponto de vista a versão inferior, ruim. Tudo por causa da minha atitude nociva: queria falar português perfeito, sem “contaminações”. No início, não podia cumprir este requisito misturando português com espanhol. Depois de me livrar do idioma de Cervantes, o português brasileiro tornou-se um inimigo declarado. Nessa altura, minha filosofia não me permitia, por exemplo, deixar os pronomes possessivos sem artigo. Que blasfémia seria isso! A gente não iria aceitar. Os pronomes pessoais quase sempre precedendo um verbo? Me parecia impensável. Uma superabundância de construções gramaticais com gerúndio dava-me vertigens. Nem sequer estou brincando. 
  A legião de discordâncias, iniciada pelo famoso Grito do Ipiranga de 1822, é ainda mais numerosa. Entre os rebeldes: o sotaque que difere bastante da variante portuguesa. A pronúncia insubordinada varia bastante de região para região dentro do Brasil mesmo, ainda mais que em Portugal que por sua conta abriga muitas peculiaridades. O vocabulário também mantém certa independência. Na era digital Portugal e o Brasil apresentam teclados diferentes apesar de partilharem o mesmo alfabeto. 
Apesar de tudo isto, decidi provar algo novo, aventurar-me. A aprendizagem de português no meu caso tinha sempre muito a ver com um esforço consciente. Queria, pelo menos durante alguns meses, mudar de atitude. Quando aprende, a criança tem de conhecer, em primeiro lugar, os sons da língua materna e só após esta introdução adquire habilidade para ler e escrever. Para dominar a língua estrangeira é necessário um empenho de outro tipo – o aluno deve ler com atenção, memorizar as regras, etc. Por isso, as competências do falante nativo são diferentes das do estudante de fora. Um bom exemplo desta regularidade é que os portugueses e os brasileiros têm muitas vezes problemas em perceber-se uns aos outros (sem falar nos estrangeiros). Em ambos os casos têm de se acostumar a sons desconhecidos. Paradoxalmente, é mais fácil entender variantes distintas para nós – os adeptos zelosos da escrita. 

Por outro lado, a arte da conversa diária bem sucedida reside em não ter papas na língua, no sentido de não pensar muito na correção gramatical, só se preocupar com ser entendido. A ideia mesma aliena o estudante de Letras. Para ele é inconcebível esquecer a conjugação, declinação, frase, crase, sintaxe. Ele trata estes fenómenos como os elementos essenciais da língua. Sim são unidades indispensáveis no discurso linguístico, fazem parte inerente da metalinguagem, mas para os 95% de falantes não importam. É necessário para nós – filólogos – termos em conta que somos um nicho. Devido à familiaridade com a norma a nossa expressão é correta, pura, mas, ao mesmo tempo, falta-lhe vigor, naturalidade. Obedece à regra, ignora, porém, interjeições, superfluidades típicas dos falantes nativos. 
A estada no Brasil em consequência do intercâmbio em Portugal isentou-me das restrições quotidianas, mas não me virou contra a filologia. Longe disso. Ao contrário, só ressaltou a importância de cuidar da fala e escrita e afirmou o papel dos filólogos neste processo que é… dar exemplo. A língua está sempre a mudar e, visto que é a propriedade coletiva dos homens sábios, não temos poder individual de parar a transformação. É-nos possível apenas influenciá-la. No entanto, para promovermos o crescimento da língua, antes disso, precisamos de entender a relação entre as diferenças que a constituem e que determinam as mudanças seguintes. 

A minha passagem por Terras de Vera Cruz chega ao fim e é muito provável que o meu português seja agora mais corrupto do que os políticos brasileiros, mas que experiência libertadora é essa! Tanto conhecimentos linguísticos como literários importam. Não é à toa, porém, que dentro da estrutura universitária a filologia faz parte do campo mais vasto – do universo das ciências humanas. Afinal, não era a língua o que me limitava, mas o medo dela. Com a muralha do preconceito desmantelada, não há mais fronteiras. Posso continuar a conhecer as pessoas, as suas culturas, descobrir novos mundos como Pedro Álvares Cabral há cinco séculos só com uma ferramenta maravilhosa – a língua. Talvez seja por acaso… Agora mesmo veio-me à cabeça uma ideia estranha de visitar a África. 

Agradeço ao Departamento de Estudos Portugueses da UMCS. Foram eles que me possibilitaram chegar a esta conclusão humanística. Valeu. 

 Bartosz Suchecki 
3º ano Estudos Portugueses

Comentários

  1. Gostei muito do seu texto. Diverti-me muito com a história de superação do preconceito, todos nós temos uma trilha semelhante nesse sentido.

    Apesar de não aprendido muito a língua polonesa durante minha breve estadia em 2010, pude perceber alguns sotaques, entender como alguns sentimentos são expressos de maneira diferente da minha etc..

    Aprender novas línguas é maravilhoso, mas concordo contigo quanto a "indentificar-se completamente". Há muitas pessoas que se descobrem em outras línguas e culturas, o que não é o meu caso. Hoje dou fluente em duas línguas estrangeiros e tenho contato com mais três. Acredito que qualquer pessoa nessa situação já tenha sonhado em outro idioma (experiência surreal), passe horas pensando em outro idioma, adore ouvir músicas, ler livros etc., mas para mim, continuo a "sentir" em português, e é isso que faz ter uma relação especial com minha língua da infância.

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