Canções contadas: O Anãozinho

  O Pedro teria uns vinte e quatro, vinte e sete anos quando o conheci. O rapaz parecia totalmente ensimesmado e praticamente não abria a boca na presença de outros empregados da nossa pequena pensão de luxo. Era mesmo muito difícil trocar dois dedos de conversa com ele, sem mencionar já a possibilidade de entabular alguma relação mais profunda com aquele ‘filho das ruas’. O Pedro era baixo e de postura lamentavelmente fraca. Rapidamente foi-lhe cunhado pelos outros o ofensivo apodo de ‘Anãozinho’, devido à sua estatura liliputiana. Além disso, o miúdo permanecia, obviamente, à margem da nossa provisória vida social, que geralmente costumava limitar-se a umas trocas de palavras mais ou menos acidentais, ocorridas durante os curtos e infrequentes intervalos na nossa faina diária.
   Apesar dessa aparente fraqueza e vários síndromes de alienação ambiental, o Anãozinho parecia um trabalhador perfeito: todos os dias estava cumpria com as suas obrigações e tarefas diurnas de empregado de mesa e de limpeza do local. Varria, lavava a louça, preparava os quartos para os hóspedes. Não obstante, os companheiros de trabalho achavam que, injusta e erroneamente, era um imbecil, incapaz de perceber a natureza dos assuntos humanos. Apesar da perfeita execução das tarefas que lhe eram atribuídas, ao Pedrinho nunca o incumbiam de nenhuma obrigação que ultrapassasse a atividade puramente manual como se o simples atender do telefone se encontrasse fora da sua aptidão intelectual. Marcado com a etiqueta de deficiente mental, o rapaz não falava com os outros pois não havia absolutamente ninguém que supusesse que por trás da sua cortina de silêncio e incomunicação o jovem estava a construir o seu próprio mundo, uma realidade alternativa cheia de maravilhas. Passavam dias e noites de guarda e sem sono, mas tudo continuava igual e nós, sem excepção, ficávamos sempre com as mãos a arder por excesso de trabalho. O Pedrinho chegava à pensão às 6 horas de manhã e saia tarde, depois do pôr- do- sol. Outras vezes a patroa pedia-lhe que ficasse no local durante toda a noite ou até durante vários dias sucessivos.
  Um certo dia o recepcionista do nosso turno da noite teve problemas em explicar as condições e regras vigentes na pensão e referentes ao alojamento nela a um casal de idosos estrangeiros que não conseguiam entendê-lo em inglês. Ao ouvir o homem dizer alguma coisa à sua mulher naquela língua que todos nós ignorávamos o Pedrinho, que ajolheado estava a limpar o chão, inesperadamente levantou-se, abriu a boca e, para nossa surpresa, começou a explicar tudo com uma fluência linguística impressionante. Todos ficamos sem palavras ao ver e ouvir o Anãozinho falar húngaro como se fosse um budapestense de gema. Naquele momento apareceu a patroa que tinha entrado pela porta traseira. Ela também não era capaz de entender o que tinha acabado de acontecer. Depois de os hóspedes terem sido alojados no seu quarto, a mulher chamou pelo Pedrinho e, sem entendermos o porquê da sua reação, começou a repreendê-lo por ter ousado falar na presença de hóspedes tão distintos. Desta vez o rapaz nem sequer abriu a boca e agora apenas acenava afirmativamente com a cabeça em sinal de compreensão total do seu erro imperdoável. Depois de ter ouvido aquele sermão, cheio de acusações humilhantes, o nosso Anãozinho jamais voltou a atrever-se a falar com ninguém. 
  Rapidamente, tudo parecia continuar como dantes e de novo presenciávamos muitas chegadas e saídas de hóspedes que vinham à procura da tranquilidade comprada por um preço astronômico. Até um dia em que a chefe chamou por nós porque queria uma explicação para o desaparecimento de três livros da prateleira do salão no segundo andar. Curiosamente, nenhum de nós recordava os títulos daqueles livros. Apenas podíamos lembrar-nos de que efetivamente se encontravam lá na prateleira do salão, muito empoeirados, sem podermos evocar nem sequer a cor da capa de nenhum dos tomos em questão. Todos, inclusive a patroa que há muitos anos tinha recebido o local de herança, ficaram envergonhados porque tinham de admitir que nenhuma vez prestaram a mínima atenção ao conteúdo das prateleiras cujo ‘buraco’ embaraçoso foi, ainda aquele mesmo dia, enganosamente tapado com umas revistas de imprensa cor- de- rosa. Ao princípio ninguém achou estranho o facto do dito desaparecimento dos três livros e a ausência do Pedrinho no trabalho aquele dia. Contudo, era verdade que a partir daquele dia o Anãozinho não voltou a aparecer na pensão. Só passados alguns anos chegou uma estranha encomenda do estrangeiro. Para surpresa da patroa, a encomenda continha os três volumes em falta da vasta coleção do seu avô intelectual falecido há mais de 40 anos. Tanto os dois os romances de Honoré de Balzac escritos em francês como o exemplar de ´Darkness at noon´ de Arthur Koestler na edição inglesa encontravam-se intactos e em perfeitas condições. Dentro do último dos livros alguém encontrou um bilhete: “Obrigado por ter podido levar emprestados e ler estes livros. Foram os últimos de toda a coleção que não consegui ler durante aqueles cinco anos. Anãozinho".

Inspirei-me na canção Spread your wings (1977) da banda britânica Queen e, além disso, introduzi alguns elementos ‘autobiográficos’ no conto. 
Michał Hułyk
1º ano de Mestrado em Espanhol

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