O Jogo de Geri


20 de maio de 1995
     Uma cozinha desarrumada – no fogão há uma panela com o jantar de ontem. Cheira a livros velhos e a canela. Dois velhotes estão sentados à mesa da cozinha. Eles têm os olhos calmos e as mãos trémulas, usam óculos, as camisas amarrotadas, suspensórios e os relógios que não são necessários porque não há pressa para os velhos. O pequeno-almoço – nada especial – o pão duro, um pouco de queijo, tomates da vizinha e algumas bolachas de canela. Nas paredes  há muitas fotos dos jovens e os cartões-postais de viagens que não vão fazer de novo.  Em cada lugar da cozinha há os livros favoritos.
-Está um dia lindo, não é Caetano?
-É, muito bonito como todos os dias de maio. Que dia é hoje?
-20 de maio. Outro aniversário? Como o tempo passa rápido!
-É verdade, o António escolheu o mês mais bonito para deixar os amigos e este mundo. As coisas nunca mais foram as mesmas desde aquele dia quando ele morreu.
-Não sejas tão triste e melancólico! Lembras-te quando o António esqueceu os óculos e passou à frente da casa dele e só deu conta seis ruas depois?
-Depois ele disse que queria dar um passeio e naturalmente não estava perdido. Lembras- te como ele cantou no coro para senhores e o maestro aconselhou-lhe delicadamente…
-…umas aulas de dança! Lembras-te como plantou flores para a mulher. Regava-as todos os dias mas não apareceram umas flores lindas mas..
-...uma curgete. Sabes, a última vez que jogámos xadrez foi três semanas antes da sua morte. Desde então não fui ao nosso lugar no parque.
-Eu também não, mas vamos jogar hoje como nos velhos tempos com o António!
-Vamos embora!
Um parque em que as flores florescem, há música no ar porque as aves cantam e umas crianças comem gelados de morango. Cheira a frescura como antes da tempestade. Dois Velhos vão com umas bengalas para andar e um tabuleiro se xadrez debaixo do braço. O tabuleiro de xadrez traz muitas lembranças sobre histórias antigas e a amizade fiel dos homens.
-Vamos recomeçar do sítio em que ficámos?
-Claro como água! Mas desta vez não te deixo ganhar.
-Nesta semana ensinei o meu neto a jogar. Raios! Não jogo como antes.
-Melhor ainda!
-Começa uma batalha ingrata!
Às vezes as peças caíam porque os senhores tinham as mãos trémulas. De vez em quando havia muitas palavras duras que causaram, pelo contrário, riso e não raiva.
-Sinto que eu ganho!
-Dás vontade de rir! Estás errado.
-Melhor move algo e não digas disparates!
-Acorda para a vida! Agora é a tua vez!
-Realmente… Estou a sufocar…
-Caetano! O que está acontecendo?
-Não posso.. Não posso respirar.
-Socorro, Socorro!
-Não quero morrer.
-Calma, amigo. Como está a tua respiração?
Utilizando um momento de desatenção do seu amigo preocupado, Caetano virou o tabuleiro de xadrez e agora ele estava em melhor posição.
-Estava a brincar! Estou bem.
-Porquê , porquê ?! Estás louco?
-Eu gosto do medo nos teus olhos. Era uma brincadeira e às vezes precisamos. E… Ganhei! Ganhei!
-Não acredito tu enganaste-me!
-Ganhei!
-Tens um problema mental ou algo?
-Estás surdo como uma porta? Ganhei! Digo pela terceira vez.
-O quê?! É verdade… Estava distraído.
-Levei a carta a Garcia!
-Bem, parabéns. Uma dentadura para ti. És um homem muito afortunado…
-Ótimo, obrigado mas não sei se estou feliz…
Começou a chover e aceitou o seu prémio, Caetano levantou-se do jogo de xadrez, sentindo os seus velhos ossos ranger. Como começou a sua viagem de volta a emoção da vitória desapareceu com cada passo que dava e o sorriso em seu rosto passou de entusiasmo juvenil para um sorriso da lembrança dolorosa.
“ A vitória era mas doce quando estavas vivo, meu velho amigo… “


Gabriela Malik
1º ano de Filologia Ibérica

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