Lublin-Lisboa 46 dias a pedalar por essa Europa fora!

  Quando era miúdo e tinha uns oito, nove anos sonhava em fazer uma grande viagem à volta do Mundo. Uns anos mais tarde, mas ainda em pequeno e apesar de ser uma perspetiva ainda muito distante e incerta, já esquadrinhava possibilidades de empreender algum projeto duma louca peregrinação. Assim, não parava de procurar companhia indagando os meus companheiros do bairro e convencendo-os que fossem comigo ao Mar Báltico...de bicicleta. A resposta sempre foi a mesma: “Ao mar de bicicleta?! Ganda maluco! Eu não consigo ir nem ao lago perto daqui. Não vou, de jeito nenhum!”. Era óbvio que não houvesse muitos interessados mas ao menos percebi naquela altura uma coisa de grande valor: se queria ir, esperava-me uma longa e solitária viagem. 
  Mas, se alguém perguntar, o que é que significa viajar hoje em dia pelo mundo que se tornou de repente tão pequeno e tão maravilhosamente disponível ao simples alcance da mão, com a alta tecnologia capaz de cobrir todas as distâncias? Para dizer a verdade, basta fazer um clique na Internet, fazer as malas e subir a bordo dum avião. Três horas mais tarde entramos numa outra realidade indo de elétrico pela famosa Alfama lisbonense. 
 Ou numa variante mais ambiciosa e mais romântica, para alguns uma variante “idiota”, estamos a subir, já suando em bicas uma estrada secundária algures na Voivodia de Świętokrzyskie na Polónia central. Atrás das pequeninas Montanhas de Świętokrzyskie estende-se a gigante zona industrial da Silésia, dividida entre a Polónia e a República Checa. Algures, perto da fronteira há uma pequenina e estreita estrada secundária, quase não frequentada por ninguém. Aquela estrada vai por uma grande planície ao longo do rio Váh que mesmo na fronteira desagua no majestoso Danúbio. Atravessado o rio, pelas terras húngaras, junto ao Lago Balaton e mais adiante pelo triângulo territorial húngaro- esloveno-croata para chegar à Costa Mediterrânica italiana. E logo, pela Itália, pela França, pelos Pirinéus e pelo Caminho de Santiago...Quatro mil quilómetros do imprevisível entre Lublin e Lisboa, contra o vento dos impedimentos, na sobrecarregada bicicleta que ia tornar-se o meu meio de transporte, a minha “casa com rodas”, o meu melhor amigo e “o meu tudo” durante aqueles dias da solitária peregrinação pelo continente. 
 Todas as viagens, mesmo que isto já soe trivial, mudam-nos e fazem com que se alargue a nossa perspetiva do mundo ao redor. Por vezes nem damos conta que neste mundo há homens que sabem abrir os nossos corações abrindo os seus sem a mais pequena hesitação. E sim que isto é verdade! Uma vez, indo pelos campos e aldeias croatas precisei de afiar a minha faca, incapaz já de cortar pão. Dirigi-me a um homem que estava a reformar a sua velha casa algures numa pequena aldeia do norte do país. Uns minutos mais tarde estava sentado à mesa a banquetear-me com os meus novos amigos. Recebi muito mais do que precisava. Os homens, já alegres estavam a fantasiar uma doida visão de expulsar todos os inimigos da pátria- os ciganos, os sérvios e outros para depois ´importar´ para a Croácia cinco milhões de Polacos- “os melhores amigos da nação croata, os melhores homens do mundo!”. “Fod... cinco milhões de Polacos!” repetiam. Nem eram capazes de perceber que já queria continuar a viagem- voltaram a trazer mais comida e mais vinho croata! O dono trouxe por fim toda uma coleção de facas para que escolhesse uma. E, já embriagado, começou a encher de notas o meu bolso. Mas, nem pensar, isto significava que já era hora de partir. Deixei então os dois homens, incapazes de reter as lágrimas. Os olhos do dono daquela pequena casa de madeira eram os mais tristes que vi na minha vida. O homem do povo, simples, capaz de dar-te tudo o que tinha- todo o seu amor ou todo o seu ódio. Nem imagino o que me podia oferecer se eu fosse cigano ou sérvio... 
 Passava então quilómetro atrás de quilómetro movido pela paixão de vaguear, com o termos que normalmente guardava e mantinha fresca a água mas que, já algures na Hungria, começou a encher-se cada vez com mais frequência do melhor néctar da Europa do sul. Sabia relativamente pouco, ou seja muito pouco, do país aonde me dirigia, daquele “fim da terra” como o costumavam denominar os medievais, onde há trinta e tal anos atrás os homens colocavam cravos nos canos dos carros de combate. Apesar disso pelo menos tinha mapas, dos quais não dispunham os navegantes portugueses do século XV que só mais tarde iriam desenhá-los e, ao contrário deles, sabia o meu destino. Ou, se calhar, sabia somente a direção... Acho que as mais terríveis doenças e a aleijões dos nossos tempos são a falta de fé e o desinteresse pela vida revelado por alguns homens. Tudo já foi descoberto, nomeado, tudo foi escrito e então já não há nada que seja capaz de surpreender o malcontente ser humano. A navegação em busca de aventuras e descobertas de novas terras minguou à chamada “navegação” pela realidade virtual que parece ser considerada o melhor substituto de todo o real na nossa gloriosa época pós- moderna saturada com a chatice e a inelutável desesperação. Não obstante, às vezes basta desligar o computador para darmos conta que essa velha doença do “fin de siécle” é quase exclusivamente própria dos habitantes das grandes aglomerações da classe média acomodada do mundo ocidental. Assim que deixamos a cidade, vemos que a loucura e a insensatez cedem à paixão de viver a vida plenamente. Deixamos então o mundo virtual, este impenetrável mistério de aparência e de engano que se tornou a nossa única quotidianidade para entrarmos na realidade como se fosse esta viagem uma volta ao passado, ao mundo que para a maioria de nós já está morto. Seja o que for que possa significar viajar mas seguramente cada viagem é significativa e até revelante na dimensão individual. Viajar significa observar e escutar com muita atenção, conhecer, aprofundar e em resultado, às vezes, entender que a visão apresentada na televisão tem pouco a ver com a realidade. 
  Conheci, errando pelas terras europeias, inumeráveis ciclistas, caminhantes, peregrinos, viajantes, romeiros e vagabundos, cada um dos quais levava se calhar um mundo inteiro dentro do coração. Houve entre eles um francês de uns 35 anos que ia em peregrinação à Terra Santa em Jerusalém. Aquele “discípulo moderno” de Jesus avançava muito devagar na sua velha e enferrujada bicicleta e, como o seu mestre, não tinha quase nada consigo. Lembro- me bem que naquela noite preparei o jantar com todos os ingredientes que tinha- cozinhei uma sopa na fogueira. E não foi a primeira, nem a última vez nessa viagem que vi lágrimas nos olhos dum homem. Umas semanas mais tarde, já algures nas montanhas de Navarra parei na praça dum pequeno povo para me abastecer de água. Não estava muito calor mas não vi ninguém na rua exceto uma família árabe - um homem, a sua mulher e dois miúdos jovens. E, quando já estava a abandonar a aldeia, ouvi uma voz gritando: Senhor! Espere! Foi o árabe que chamou por mim da janela da sua casa. Sacou então duas bolsas gigantes, cheias de comida, dentro das quais se encontrava, entre outras iguarias, um pote de sopa de lentilha. “Foi a minha mulher que preparou isto”- disse. E eu não sabia dizer mais do que -“Deus te abençoe”. O Marroquino cumpriu assim a sua obrigação muçulmana, o mandamento de Alá que o obriga a alimentar o faminto. Eu não estava com fome e nem era capaz de sustentar a carga para equilibrar o volante do meu veículo. Não obstante naquela mesma tarde tive oportunidade de compartilhar a comida com uma família francesa e uns dias mais tarde em Burgos, no velho coração de Castela, onde, conforme esperava encontrei pedintes. Nada na Natureza se perde, tudo se cria e tudo se transforma. Fui ajudado numerosas vezes naquela longa peregrinação, e quando já estava a perder fé aparecia algum bonachão que não hesitava em estender a sua bondosa mão e manter assim a chama da esperança. Para tantos outros o bom samaritano fui eu. 
 Foram tantas e tão reais as pessoas que conheci que por vezes esqueço os nomes e as caras na minha memória embaçada: uma família espanhola no desértico e até espantoso “Mar de Castela” dos intermináveis campos de trigo, que me deixou pernoitar, quando estava todo molhado na sua pequena um idoso português que ao ver-me a consertar a bicicleta me ofereceu boleia e me levou a casa da sua família algures perto de Sabugal.“Você fala muito bem a nossa língua”- não deixava de repetir apesar de eu não perceber quase nada, e os ciganos-“condenados” ao meu destino pela sua tradição secular- que sempre que me viram me cumprimentavam com um sorriso e com gesto de mão. Um jovem polaco numa sobrecarregada bicicleta foi naqueles dias um deles. 
 Naturalmente há pessoas que nunca tiveram oportunidade de abandonar a sua vila, ver a cidade, viajar e conhecer o mundo. E há também quem diga que tais homens não têm nenhum conhecimento profundo das coisas porque não viram nada na sua vida, como por exemplo alguns camponeses portugueses que apesar de morar pertíssimo nunca puderam deixar o arado e ir ver o mar. Não concordo absolutamente porque embora esta constatação às vezes seja verdadeira, geralmente não parece acertada e não tem muita justificação. Há uns anos atrás conheci um jovem estrangeiro que viajou por todo o mundo e admitiu ter visitado quase todos os lugares mais exóticos. Apesar disso não sabia dizer nada das suas viagens além da vulgar trivialidade “Yeah, it was f...cool!” quando estava a tentar descrever a sua única “experiência internacional” da qual se lembrava- os bares. Como o gajo tinha ar de tipo inteligente, da chamada “boémia artístico-intelectual”, não podia acreditar que todo o “original” nele se limitasse ao superficial e ao aparente. Aquele jovem viu muitas coisas mas não as experimentou, só se limitou consumi-las com a vista- o sentido humano mais alienante e enganoso. Mas, como diz o provérbio, a barba não faz o filósofo, nem as viagens fazem com que conheçamos o mundo. As novas terras só se podem descobrir vendo as coisas até ao fundo, mas isto supõe ver com o coração, não só com o intelecto.
 Depois de 46 dias a pedalar cheguei por fim a Lisboa onde de repente me dei conta que era completamente incapaz de me comunicar na gloriosa língua de Camões, especialmente na sua variante moderna da rua chamada calão. Aqueles dias passados em viagem, as noites na minha tenda, nos bosques, nas praias e nas aldeias, junto à fogueira acesa, solitárias ou em companhia mas sobretudo as pessoas, os peregrinos que encontrei no caminho mudaram a minha vida.
 Michał Hułyk

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Punk rock exótico. História do punk em Portugal.

Tascas de Portugal

Arte Luso-oriental e Indo-portuguesa