O Silêncio (II)

Foi pedido aos estudantes do 2º ano de Filologia Ibérica que, depois de lerem o conto "O Silêncio", escrevessem a continuação da história, um novo final. O texto integral do conto de Sophia de Mello Breyner Andresen pode ser lido aqui: "O Silêncio"
Dentre os trabalhos do alunos foram escolhidos os melhores e hoje é publicado o segundo:

Pela primeira vez a Joana sentiu-se assim. Entrou na cozinha, pôs a água na chaleira e colocou-a sobre o fogão como se quisesse turvar o silêncio que a rodeava. Pela janela aberta observou o céu constelado, que agora lhe parecia sinistro e tenebroso. O grito desta mulher tocou-lhe muito profundamente. Não sabia exatamente o que se passou no seu interior, mas tudo assumiu alguma outra perspetiva. Isto, o que até hoje lhe parecia a tranquilidade e o alívio, agora era para ela uma estabilização fingida e rotineira, a qual há muitos anos conseguiu atingir. O som do apito da chaleira despertou-a da reflexão. Era já tarde e ela costumava dormir a esta hora, mas desta vez a sensação da revolta e oposição não a deixava silenciar-se nem acalmar-se. As memórias regressaram. A Joana agarrou o copo com as mãos, aproximou-o de si mesma como se fosse o único companheiro, o único calor que podia experimentar. Acostumou-se à solidão, mas agora, queria muito que alguém se sentasse em frente dela à mesa da cozinha. Deu-se conta de que aquele grito despertou a sua personagem antiga, que teve de enterrar para organizar a sua vida de novo e para dar a sensação de segurança às crianças. A consciência da presença deles na sua vida aumentou ainda mais a sua fraqueza e a sua pena. Amava muito os seus filhos e ao mesmo tempo queria voltar aos anos da sua juventude e imprudência. Cada vez que tomava um trago do chá quente, mais se aprofundava nas escuridão da sua alma, como se derretesse os gelos, que a separavam dela mesma. Fechou os olhos e na imaginação viu os quadros de antes de há muitos anos. Não queria a vida como essa que levava. O tempo, os acontecimentos que tinham passado, a gente que tinha encontrado, verificaram os seus planos de vida. Então, era uma mãe sozinha, que criava os filhos e que nunca tinha tempo para ela mesma. A rotina, que a acompanhava desde há um certo tempo, adormeceu as suas ambições e as esperanças de qualquer mudanças. 
 Aproximou-se do espelho pendurado perto do guarda-louça. Pela primeira vez desde há muito tempo, reparou verdadeiramente na sua cara. Era ainda uma mulher jovem. Tinha as rugas soltas, mas o seu rosto conservava o aspeto fresco e a forma impecável. Ficou assim, observando com os olhos tristes uma figura, que estava no outro lado do espelho. Durante anos fingia ser uma mulher forte e não necessitava de ajuda dos outros. Dedicou toda a sua vida aos seus filhos. Agora algo se partiu. Considerava uma pergunta que apareceu de repente na sua cabeça: “Porque nunca expressava os seus sentimentos? Porque não podia fazê-lo?” Sentia-se duma maneira estranha na sua casa, na sua cozinha, rodeada pelos objetos alheios. Até este momento tudo na sua vida era amansado, conhecido. No momento em que deixou de lutar com os seus sentimentos, viu tudo de outra perspetiva, ainda não descoberta. Desligou a luz na cozinha, desta vez movendo-se pelo seu apartamento como um visitante. Todos os cantos, as paredes, as portas, as janelas pareciam ser estranhas. Esta casa ainda não tinha conhecido o interior verdadeiro da Joana. Quando entrou no seu quarto de dormir, achegou-se à colcha estendida regularmente na cama. A Joana rodeada pelo negrume escutava os ecos da rua, como se tivesse esperança que o grito da mulher desconhecida voltasse uma vez mais. Podia-se ouvir só os sinos da igreja que bateram cinco badaladas. A Joana adormecia lentamente, quando os primeiros raios de sol entraram às escondidas pelas janelas tapadas. Os comboios já andavam no seu ritmo diário, os proprietários das lojas pequenas e das cafeterias abriam as portas para os primeiros clientes, a cidade acordava para a vida.
Iga Serwacka
2º ano de Filologia Ibérica

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Punk rock exótico. História do punk em Portugal.

Tascas de Portugal

Arte Luso-oriental e Indo-portuguesa